quarta-feira, 17 de maio de 2017

ONDE É QUE NASCEU O FADO ?    GUTA SANTOS - MARÇO de 2008   ( Entre acto teatral )( Entra embriagado e no decorrer da cena
                                                      vai ficando sóbrio )


                                                                                   
Seu perdão, minha senhora
Eu tenho a cabeça à nora,
Estou um pouco embriagado,
Mas não vou daqui para fora
Sem que alguém me diga agora
Onde é que nasceu o fado.
Já andei por tanto lado
Já corri meia Lisboa.
Gente nobre, gente boa…
Ninguém sabe…!  E eu estou estafado.

Alguém me disse afinal,
P’rós lados da Mouraria
Que toda a gente, dizia…
Foi na mourama que o tal,
Veio ao mundo coitadinho,
Muito sarnoso e magrinho.
Para fado, não estava mal,
Tinha de ser. Pobrezinho.

Um chinês de olhos em bico
Diz com a boquinha num nico:
Escuta aqui oh “patlão.”
Na Rua do Capelão…
Foi lá que o fado nasceu…!
Mas, convencido não fico.
Foi lá que o fado nasceu?
A rua era mesmo à mão
E lá fui, pelo sim pelo não.
--O “ Fado “  é já doutra era…
Talvez ali a Severa
Que o metia lá em casa
Saiba onde é que ele nasceu.
Coitada, quebrou a asa
Já lá não estava, faleceu.

Em frente, mora o Maurício
Perguntar foi desperdício
Também não me respondeu
Pudera, também morreu.
Fui-me embora aborrecido.
Com saudades do falecido.

E até a Mariquinhas
Me fechou as tabuínhas





Fui de frosques, chateado
Perguntar para outro lado
Onde é que o fado nasceu?…
Ninguém sabe, ninguém viu
Ou responder ninguém quis
Estarei no meu país ?
Não parece. Que sei eu!
Até a Rosa Maria
Nada sabia coitada
Também já está enterrada
E tinha tanta virtude…
A Senhora da Saúde
De tanta fé e desvelo
Ainda existe assustada
À espera do camartelo


Está aqui um berbicacho
Quem me manda ser borracho
Já estou farto desta história.
No  “Elevador da Glória”
Onde se chega num salto.
Zarpei para o Bairro Alto
Um bairro mal afamado ?!
Por aqui andou o fado,
E decerto aqui nasceu.


Numa tasca das antigas
Um grupo de raparigas
Não me soube responder.
--O Fado? Mas o que é isso?
Sei lá onde ele nasceu!
Oh Bacano, mas que frete,
Pergunta na Internet
No café aqui ao lado.
E lá fui contrariado

Fui de orelha à escuta
Segui aquele conselho
Se toda a gente computa…
Eu não, porque já estou velho!
Um rapazelho embirrante
Que devia ser estudante
Apontou-me em tom gozado.
--Quem responde ao seca-adegas
Que anda borracho e às cegas.
Onde é que nasceu o fado?

Sacanas, Ignorantes.
São estas coisas estudantes.
Mais respeito. Pode ser?
Eu sei bem que estou borracho
Não tem mais que fazer?
Sabem que mais?…O que eu acho…
Agora vou perguntar.
E quem me vai responder…?
Algum de vós sabe ler?


Já na Rua da Atalaia.
Perguntei a um tipo faia,
Mas de corpinho “ Danone “
Ia agarrado ao telefone,
De raiva até estremeceu.
Respondeu mal humorado
--Eu nem sei o que é o fado”
Sei lá onde ele nasceu!


Deves der americano.
Para esse lado vai tu,
Palhaço, cara de cu.
Gritei eu para o fulano
Chulo de merda, panela.
Para ser tão magricela,
Passas fome todo o ano.

Ai! É enorme Lisboa
Fui à Bica, à Madragoa
Ninguém sabe, que chatice
Se alguém sabia não disse.
Que pouca sorte esta a minha
Será que ele é alfacinha?
Há já quem diga que não.
Já nem é fado, é canção.
Onde nasceu afinal
A canção nacional?




Nacional? Uma treta!
Quem o ouve, quem o vê,
Na rádio, ou na TV. ?
Nunca chupou nessa teta.
Pudera, é pobrezinho.

Do Algarve até ao Minho
Todos adoram o fado.
Mesmo sendo um enjeitado
Coitado do fariseu
Que nem sabe onde nasceu.

Já sei! Ideia brilhante
Vou lá chegar num instante
Brilha por fim uma chama.
A sorte que Deus me deu
Foi nas vielas de Alfama,
Foi lá que o fado Nasceu!
Também não? Que arrelia!
Perguntei, ninguém sabia.
Aparece pela noitinha,
Sorrateiro, pé ante pé,
Bebe uns copos de Água-Pé,
Uma sopa de feijão,
Uma sardinha no pão,
Um pastel de bacalhau.
Trata-se bem  o marau!
Atira uma cantiga,
Aquela formosa amiga
E marcha de madrugada,
A reboque da alvorada.
Abre a boca num bocejo
De dia ninguém o vê.
Dizem que vai com a maré
De braço dado com o Tejo.

Já não caio noutra asneira
Vai passando a bebedeira
E já vejo mais claro
Que interessa onde nasceu
É do povo, é plebeu
Estudou, formou-se cresceu
Toca a vida para diante
É operário, emigrante.
É nobre, não arrogante
A ninguém é indiferente
Arrepia a pele à gente
Ouvir o fado menor.
Atirado em tom maior,
No corrido, delirante.
Batido, consola a gente
Fala de amor e ciúme.
Não só de dor e queixume.
Adorado no estrangeiro,
Tem corrido o mundo inteiro.
Do Canadá ao Japão.
Ao trinar de uma guitarra
Sujeita, domina agarra,
Leva a fama de roldão
Faz crescer o coração…






Ai meus senhores, vou parar.
Perdão. É só um momento…
Vou começar a chorar.
Que raiva, não aguento…

Eis o fado meus senhores
A ninguém deve favores
Castra-lo? Tinha que ver.
Já tentaram, podem crer.


Ponham colchas nas janelas
Baixem a luz, tragam velas
Vai andar pelas vielas
Ciúme, Paixão, pecado.
Desencontrados amores.
Façam silêncio senhores,
Que se vai cantar o fado





GUTA SANTOS
MARÇO de 2008


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