sábado, 22 de março de 2008

AS PORTAS DO “Quebra Bilhas”
Guta Santos –Janeiro 2008 ( Fado Pedro Rodrigues)

Um fadista do passado
Muito velhote e cansado
Foi um dia ao Campo Grande
A um retiro afamado
Onde se cantava o fado
Para ver se via o Zé Grande

Tinha fé de ir encontrar
A Severa ainda a cantar
Ou algum actor famoso.
Também deviam lá estar
As coristas do Mayer
E o Conde do Vimioso

Foi grande a desilusão
Viu a casa e o portão
Mas estava tudo fechado.
Não ouviu gemer guitarras
Que nos almoços e farras
Trinavam por todo o lado

Não encontrou a tipóia
Do Malhado e do Pinóia
Nem sequer viu o Zé Grande
Nem Fadistas, nem rambóia
E ninguém lhe ligou bóia
No Jardim do Campo Grande

Foi-se embora amargurado
E num gesto, ainda esperançado,
Cofia as brancas patilhas
Voltar ao fado e às hortas
E um dia alguém abra as portas
Ao “Retiro do Quebra Bilhas”
AS CONTAS DO TEU ROSÀRIO

Sem saber rezar, rezei
As contas do teu rosário
Por rezar tanto, aumentei
As penas do meu calvário

Não mais poderei esconder
O que há muito adivinhas-te
Mas tu és linda e mulher
Como posso ignorar-te

Se querer assim é pecado
Não se pode amar ninguém
Sou por amar castigado
Não me castigues também

Meu coração não comando
Nem tu comandas o teu
Ninguém os doma, nem quando
Chovem censuras do Céu

Guta santos 2007

quarta-feira, 19 de março de 2008

A MINHA GUITARRA É TORTA

A minha guitarra é torta
E já nasceu com defeito
Mas para mim pouco importa
Gosto dela desse geito

Eu fi-la com tal carinho
Que o meu coração se corta
Quando alguém me diz escarninho
A tua guitarra é torta

Há tanta gente no mundo
De alto valor e conceito
E de saber tão profundo
Mas que nasceu com defeito

Se Deus fosse justiceiro
Só batia à nossa porta
Para nos dar um filho inteiro
Mas isso a ele que importa

Não vale a pena chorar
Por fazer algo imperfeito
Só proteger, muito dar
E gostar do mesmo jeito

GUTA SANTOS - 2007

VALE A PENA PERDOAR

Vai terminar meu calvário
Ao longe no campanário
Soa a sexta badalada
Volta para casa o devasso
De mansinho, passo a passo
Sobe descalço a calçada

Abre a porta sem ruído
Com medo de ser ouvido
Pela parva que está deitada
Tropeça atropela a cama
Do ciúme apago a chama
E finjo não dar por nada

Depois deita-se a meu lado
Sinto seu corpo gelado
Suspirou e adormeceu
Onde andou ? Sei muito bem
Mas a outra que ele tem
Nem sequer o aqueceu

Está magro, mal encarado
Cheira a noitada e a fado
Mas é tão lindo o estupor...
Perdoar a quem se ama
Manter acesa essa chama
Não é fraqueza, é amor

Sou parva, mas que fazer ?
Meu amor faz-me sofrer
Pode não valer vintém
Não me bate, não é bruto
Depois lavado e enxuto
Está novo, que mal tem

Guta Santos - Março de 2008

A COVA DA ALMOFADA

Ao meu lado a almofada
Sente saudades de ti
Ainda tem cova marcada
Do rosto que estava ali

Foste embora, já faz tempo
Mas teu odor permanece
Cheira a jasmim, cheira a campo
O cheiro que ela não esquece

Pobrezinha, está chorosa
Aguardando a meiga sova
Que a tua mão carinhosa
Ao bater tirava a cova

Espera ainda coitadinha
A tua doce pancada
Tu não vens e a pobrezinha
Vai ficar sempre amolgada

Também eu para ali estou
Com pena da almofada
Não sei se fico ou se vou
Só olho a cova e mais nada

GUTA SANTOS - Março de 2008

terça-feira, 18 de março de 2008

ONDE É QUE NASCEU O FADO ?

Seu perdão, minha senhora.
Eu tenho a cabeça à nora,
Estou um pouco embriagado.
Mas, não vou daqui embora,
Sem que alguém me diga agora,
Onde é que nasceu o fado.
Já andei por tanto lado,
Já corri meia Lisboa.
-Gente nobre, gente boa...
Ninguém sabe...! E eu estou estafado.

Alguém me disse afinal,
Para os lados da Mouraria,
Que toda a gente dizia...
Foi na Moirama que o tal,
Veio ao mundo coitadinho,
Muito e sarnoso e magrinho.
Para fado, não estava mal.
Tinha de ser. Pobrezinho

Um chinês de olhos em bico,
Diz com a boquinha num nico:
-Escuta aqui oh! "patlão",
Na Rua do Capelão...
Foi lá que o Fado apareceu.
Mas, convencido não fico.
Foi lá que o fado nasceu ?
A rua era mesmo à mão
E lá fui, pelo sim pelo não.
O Fado ?...É já de outra era !..
Talvez ali a Severa,
Que o metia lá em casa,
Saiba onde é que ele nasceu.
Coitada, quebrou a asa.
Já lá não estava. Faleceu.

Em frente, mora o Maurício.
Perguntar, foi desperdício,
Também não me respondeu.
Pudera, também morreu.
Fui-me embora aborrecido,
Com saudades do falecido,
E até a Mariquinhas
Me fechou as tabuinhas.

Fui de "frosques" chateado,
Perguntar para outro lado,
Onde é que o fado nasceu.
Ninguém sabe, ninguém viu,
Ou responder ninguém quis
Estarei no meu país ?
Não parece... Que sei eu !
Até a Rosa Maria
Nada sabia, coitada.
Também já estava enterrada
E tinha tanta virtude...
A Senhora da Saúde,
De tanta fé e desvelo,
Ainda existe assustada,
à espera do camartelo.

Está aqui um berbicacho.
Quem me manda ser borracho.
Já estou farto desta história.
No "Elevador da Glória"
Onde se chega num salto.
Zarpei para o Bairro Alto.
Um bairro mal afamado !?
Por aqui andou o Fado
E decerto aqui nasceu.

Numa tasca das antigas,
Um grupo de raparigas,
Não me soube responder.
O Fado ? Mas o que é isso ?
Sei lá onde ele nasceu !
Oh "Bacano", mas que frete !
Pergunta na "Internet"
No café aqui ao lado.
E lá fui contrariado.

Fui de orelha à escuta,
Segui aquele conselho.
Se toda a gente computa !
Eu não, porque já estou velho!
Um rapazelho embirrante,
Que devia ser estudante.
Apontou-me em tom gozado.
Quem responde ao seca-adegas
Que anda borracho e às cegas.
Onde é que nasceu o fado ?...

Sacanas, ignorantes.
São estas coisas estudantes.
Mais respeito, pode ser ?
Eu sei bem que estou borracho!
Não têm mais que fazer ?
Sabem que mais ?...O que eu acho...
Agora vou perguntar:
Quem me pode responder,
Qual de vós sabe ler ?

Já na rua da Atalaia,
Perguntei a um tipo faia,
Mas de corpinho "Danone"
Ia agarrado ao telefone.
De raiva até estremeceu.
Respondeu mal humorado:
Eu nem sei o que é o Fado !
Sei lá onde ele nasceu.

Deves ser americano,
Para esse lado vai tu,
Palhaço, cara de cu !
Gritei eu para o fulano.
Chulo da merda, Panela.
Para seres tão magricela,
Passas fome todo o ano.

Ai! É enorme Lisboa.
Fui à Bica à Madragôa.
Ninguém sabe. Que chatice!
Se alguém sabia não disse.
Que pouca sorte esta a minha.
Será que ele é "alfacinha" ?
Há já quem diga que não.
Já nem é fado, é canção.
Onde nasceu afinal,
A canção nacional ?

Nacional? Uma treta !
Quem o ouve, quem o vê,
Na rádio ou na TV ?
Nunca chupou nessa têta.
Pudera é pobrezinho.

Do Algarve até ao Minho,
Todos adoram o Fado
Mesmo sendo um enjeitado,
Coitado do Fariseu
Que não sabe onde nasceu.

Já sei, Ideia brilhante!
Vou lá chegar num instante.
Brilha por fim uma chama.,
A sorte que Deus me deu!
Foi nas vielas de Alfama,
Foi lá que o Fado nasceu !
Também não ? Que arrelia !
Perguntei, ninguém sabia.

Aparece, pela noitinha,
Sorrateiro, pé ante-pé.
Bebe uns copos de água-pé
Uma sopa de feijão,
Uma sardinha no pão,
Um pastel de bacalhau...
Trata-se bem o marau !
Atira uma cantiga,
Aquela formosa amiga
E marcha de madrugada
A reboque da alvorada,
Abre a boca num bocejo.
De dia ninguém o vê,
Dizem que vai com a maré,
De braço dado com o Tejo.

Já não caio noutra asneira,
Vai passando a bebedeira
E já vejo mais claro.
Que interessa onde nasceu!
É do povo, é plebeu.
Estudou, formou-se, cresceu,
Toca a vida para diante,
É operário, é imigrante,
É nobre, não arrogante,
A ninguém é indiferente.
Arrepia a pele à gente,
Ouvir o fado menor,
Atirado em tom maior,
No corrido, delirante,
Batido consola a gente.
Fala de amor e ciúme,
Não só de dor e queixume.
Adorado no estrangeiro,
Tem corrido o mundo inteiro
Do Canadá ao Japão.
Ao trinar de uma guitarra,
Sujeita, domina agarra.
Leva a fama de roldão,
Faz crescer o coração.

Ai! Meus Senhores, vou parar.
Perdão. É só um momento...
Vou começar a chorar.
Que raiva não aguento.

Eis o Fado meus Senhores!
A ninguém deve favores.
Castra-lo ? Tinha que ver!
Já tentaram, podem crer.

Ponham colchas nas janelas,
Baixem a luz, tragam velas.
Vai andar pelas vielas
Ciúme, paixão, pecado,
Desencontrados amores.
Façam silencio senhores,
Que se vai cantar o fado.

GUTA SANTOS-Março de 2008